sábado, 27 de agosto de 2011

Missão (quase) cumprida




27/08/2011

Confesso que a minha reação no momento me surpreende. E me agrada. Estou sentado no café de um supermercado enquanto a Bisny providencia as últimas compras antes de partirmos para o Burning Man. Estamos em Reno, NV, última cidade grande antes de chegarmos ao Black Rock Desert. Em menos de três horas estaremos experenciando esse modo diferente de coexistência - e sobrevivência - com outras 60 e tantas mil pessoas, em um ambiente totalmente inóspito. Nesta mesma terra árida estaremos construindo uma estrutura com nossas 50 bandeiras,  finalizando assim uma viagem de 6 meses por todo o território norte-americano. 

Nossos amigos de San Francisco, Burners de longa data, não estarão conosco devido ao surpreendente sold out dos tickets. A cada segundo alguém nos diz que não poderemos sobreviver sem algum determinado ítem que não temos, e a lista aumenta. Acho que tudo isso serviria para um rapaz espevitado como eu estar a um milhão por hora neste exato momento, não? Pois é, mas eu estou zen. E acho que sei o porquê. Porque sei que o FiftyFlags não acaba por aqui, ele apenas muda de fase. 

O FiftyFlags é muito mais que uma viagem ao redor dos EUA. Ele é o pontapé na porta das infinitas possibilidades. Eu, o meu mundo, a minha mente e o meu coração mudaram tanto nessa viagem, ou melhor, nessa passagem, que nem sei dimensionar ainda o quanto isso vai influenciar a minha maneira de existir daqui pra frente. Às vezes penso que nem vou perceber essa mudança, já que logo ela vai se transformar em uma outra mudança, e assim por diante, até todas essas mudanças me levarem ao lugar que na verdade é imutável: Eu. Enfim, me perdoem aqueles que acham essas minhas reflexões um tanto quanto ultra obscuro-psicodélicas, o meu intuito não é produzir frases herméticas. Mas, voltando, talvez eu esteja tranquilo porque essa etapa já foi cumprida. O que quer que aconteça no deserto - e eu sinto que vai ser estrombático - só vai coroar uma jornada bem sucedida de duas pessoas que se amam e se respeitam muito. Nunca eu e Bisny estivemos tão em sintonia como estamos agora, o nosso presente é o maior presente. Todas as névoas que passaram por nosso céu foram assim como vieram; a cumplicidade e a compreensão nos fortaleceram, nos agigantaram. Somos uma dupla que funciona, mais que isso, somos um time vencedor. E esse time vai continuar lutando muito para vencer em todos os certames da vida. 

É com um pouco de nostalgia que escrevo meu último texto em solo yankee. Dentre outras coisas, essa viagem me proporcionou a retomada da escrita, que é uma atividade que me dá real prazer, me aproxima de minhas emoções e ilumina a minha razão. Esse texto que vai aqui foi bastante adiado, o último post desse blog foi há um considerável tempo. Depois disso tivemos aventuras em Washington, Alaska e Hawaii. Voltamos a San Francisco e agora cá estamos, com nossa van de carga entulhada de tralhas para nossa derradeira semana. Daqui é pro Brasil, de volta ao lar e às raízes. Os sentimentos se misturam, é uma vontade muito grande de chegar e realizar, e fazer, e acontecer, e inovar, e… E dá também um pequeno receio de sofrer com a perda dessa liberdade cristalina experimentada em desertos, montanhas, canyons e praias. Somos de São Paulo, nascemos e crescemos lá. Nossas famílias e a maior parte de nossos amigos estão lá. Mas lá também está muita coisa que não queremos pra nossa vida: buzinas, sujeira, estresse. Eu particularmente sei gostar de minha cidade, mas sei que isso não basta. Penso em aproveitar as oportunidades que ela me oferece, espremer até sair a última gota de limão, e aí, quem sabe, com meu açucar, amainar o azedume de seu concreto. 

A minha dose de doçura e de suavidade eu calibrei no Kauai. A paradisíaca ilha havaiana foi nosso lugar preferido de todos; uma semana percorrendo suas praias, cachoeiras e montanhas mexeu muito com a gente. A profunda comunhão com a natureza, o deslumbramento com suas preservadas paisagens e a fantasia de ter um pedaço disso amansaram tudo que chacoalhava por dentro. Saí de lá chorando, doído por partir e agradecido de ter ido. Um choro bom, que faz entender que o que importa mesmo é o amor, que todas as pequenezes do cotidiano ficam ainda mais minúsculas quando somos fruto de uma mãe tão perfeita quanto o universo. E é confiando nisso, com a fé impregnada em todos os meus poros, incorporada ao meu ser, que me despeço e que acredito piamente que o sol da minha cidade cinza vai estar me esperando ainda mais brilhante do que o da minha adorada Kauai.
FiftyFlags: We Believe!
Até a volta.


É com um nó daqueles na garganta que vou escrever este parágrafo. O último escrito nos EUA. Meu coração já está dando sinais de saudade, de nostalgia, de despedida... Coração, eu consigo te entender! Esses seis meses de estrada foram um presente da vida, lugares como Kauai e momentos como esse, exatamente agora - a caminho do Burning Man - me tornam grata ao universo, à minha família, incluindo meus sogros e meu companheiro de alma, Thiago, esta corrente de amor e fé que orientou o FiftyFlags ao longo de sua jornada. Aos amigos que fizemos aqui... Aii como dói dizer Bye... But I'll see you soon, thank you so much for everything! Aos amigos no Brasil: estamos chegando!! 
Isso tudo vai deixar saudade, com certeza, mas nosso sonho ainda não acabou e voltar pra casa é só parte desse processo. Volto com um sorriso enorme, pronta pra abraçar "os meus" e com uma vontade imensa de continuar fazendo ACONTECER!
Obrigada ao AMOR, que me move.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Você tem medo do quê?



03/08/2011

15:00. Vinte adolescentes nipônicos ouvem atentamente as instruções do também nipônico chefe da delegação. Estou aqui sentado em uma banqueta esperando a Bisny voltar com o cartão de crédito, sem o qual não posso alugar uma bicicleta (a minha está em SF). A turminha do Jaspion se prepara para uma carreata pelas ruas de Portland, Oregon, já devidamente encapacetados, só esperando o comando do líder. Breve, partirei em voô solo, a fim de oxigenar o cérebro e concatenar as ideias que tentarei expressar em sentenças substanciais. Esse inesperado tempo de espera gerou essa introdução, que, em algumas horas, terá mais conteúdo verborrágico visceral acrescentado. Vou pedalar e volto para soltar o verbo. Sem censura, sem freios, mesmo que meus leitores não passem de meia dúzia. Pouco me importa, isso para mim é uma necessidade, é a maneira mais satisfatória que encontro para materializar a voluptuosa amálgama de pensamentos engasgados que infestam o meu ser. É o modo mais eficiente de me conectar com meu âmago, que me dá coragem de ressaltar, enfatizar e ratificar os ideais que fazem a cada dia que passa me sentir mais capaz de mudar à minha volta as coisas com as quais não concordo. A começar por mim.

Dia seguinte. 11:00. Não tive nem condição física nem tempo de retomar este texto após a pedalada de 40 milhas. Após rodar três horas e meia de Sudeste a Nordeste por Portland, e logo devolvida a bike, nem bem havia me esticado na grama da praça para recobrar as energias, Chris e Barô chegaram do Outlet. Fotografias rápidas, jantar natureba no Whole Foods e viemos direto para a casa da Laura, nossa host emergencial. É do sofá de sua sala que volto a escrever. E volto ao ponto em que estava.

Eu sou uma pessoa de sonhar e imaginar. Até demais, até ultrapassar os limites do sadio devaneio. Viajar  pelo mundo sem destino sempre orbitou em meus universos imaginários. Mas a vida de cada um acontece de um jeito. A minha história foi sendo escrita de modo que esse sonho tivesse que ser adiado, dia após dia. Até o momento em que a minha realidade de garçom do Spot passou a ser mais importante do que qualquer "realidade" criada pela minha mente fértil. O feijão com arroz do cotidiano passou a ter um sabor especial, e eu acho que é por isso, por ter dado valor para o presente, para o aqui e agora, é que a recompensa de poder viajar veio logo. E um mundo se abriu para mim - em múltiplos portais. A cada instante em que avanço com meus passos nesses túneis, muitos outros se esboçam e me chamam a atenção: também quero ir lá! E o medo vai ficando cada vez menor.

Em uma de nossas entrevistas, com a Heather, em SF, perguntamos pra ela o que seria em sua opinião um mundo melhor. Ela respondeu que seria um mundo com menos medo. Eu concordo plenamente. A gente é criado pra viver com medo, o medo rege os valores de todos os segmentos da sociedade. A igreja te diz para ter medo de Deus, a escola te diz para ter medo do mercado de trabalho, suas amigas te dizem para você ter medo se estiver solteira aos 30. E aí você vai, que nem gado em boiada, sendo levado nem se sabe pra onde.

Um clarão de luz, como se fosse um longo relâmpago, me sacudiu intensamente anteontem. E eu decidi não sentir mais esse tipo de medo, pois ele não me pertence. Rapidamente vou situar nossos passos. Saímos domingo de Chico, CA, onde surfamos no sofá da Donna (um capítulo interessante, mas que não será contado agora) e subimos dirigindo pela Highway 101, ao longo da faixa litorânea do Oregon. Dormimos em um hotel em Florence, simpática cidade costeira. Nosso próximo destino era a Portland de onde escrevo, e até então não tínhamos onde ficar por aqui. Desde que o Barô chegou, nossos hosts têm que estar dispostos a receber três pessoas e não duas. Como o tempo era curto, ao invés de mandar requests pessoais, decidi escrever uma mensagem no grupo de Portland da página do CS. Esse recurso já havia dado resultado positivo por duas vezes, em Austin, TX, e na outra Portland, ME. Escrevi a mensagem e pegamos a estrada. Não demorou e o telefone toca: Peter, com voz de executivo. Disse que poderíamos ficar, que passássemos para encontrá-lo no que pensei ser seu escritório. 

Atingimos o destino e o "executivo" Peter apareceu no alto dos seus 21 anos, em trajes informais e cabelo e barba desalinhados; até aí, ornando perfeitamente com a minha imagem. Mas a surpresa estava por vir, e a partir de então o tal relâmpago veio me emprestar sua luz. LUZ. A casa de Peter não tem luz. Peter vive em uma comunidade chamada The Arc. Ao todo, entre habitantes e forasteiros, umas dez pessoas devem pernoitar diariamente nesse complexo habitacional insólito. O baque da falta de eletricidade foi um misto de comicidade e desconforto, mas todos os três tiramos essa de letra. Refeitos do susto, tivemos que lidar com o descontentamento da comandante da trupe, que não tinha sido avisada da nossa chegada. Ela não escondeu sua revolta com Peter, mas foi cortês conosco: remanejou as peças e nos desponibilizou o meditation room. Acho que a Bisny não chegou a comentar que, mais uma vez, tivemos problemas com colchão de ar, dessa vez no Yellowstone. Pois é, o nosso furou e ficou por lá mesmo. Insatisfeitos com o gênero, resolvemos seguir viagem sem adquirir um novo, imaginando que nas próximas paradas ele não fosse se fazer necessário. Mas se fez. No nosso aposento da meditação só havia mesmo o carpete; sem luz e sem cama. "Bom, nem tudo está perdido, temos lanternas e o Barô comprou um sleeping bag, que, estendido, pode comportar as costas de nós três e fazer da nossa noite algo não tão duro" - pensei. 

Como é de nosso costume, convidamos nosso anfitrião para jantar. Não saímos imediatamente, porém, porque um dos moradores da comuna pegou nosso celular emprestado e acho que esqueceu de devolver - ou deu uma abusadinha mesmo. Reunidos no jardim, no semi breu do fim do crepúsculo, fomos introduzidos a Jeremy Houston. Portlander, assim como Peter, falou sobre muitas coisas de que eu até então não tinha conhecimento. Contou do encontro Rainbow, que acontece anualmente nos EUA e em outras partes do mundo, sempre em alguma floresta diferente. Contou também do Cascadia, movimento separatista que propõe a criação de uma nova nação, no território que hoje seria o correspondente aos estados do Oregon, Washington e norte da California, nos EUA, e de British Columbia, no Canada. 

Calma aí, vírgula. Melhor, ponto e vírgula. Estávamos em uma residência sem luz, alojados improvisadamente em um cômodo sem móveis e não tão asséptico, nosso celular estava momentaneamente confiscado, e, de repente, um cidadão participante desse cenário me vem com uma história de que o poderosíssimo USA, terra de tratores e soldados, senhor das armas, vai ser desmembrado e assistirá nascer de suas entranhas um novo país, liberal e vanguardista! Acho que esse quadro mexe um pouco com os sentidos de três jovens que cresceram tendo suas roupas lavadas pela empregada doméstica, não? 

Enfim, resolvido o drama do celular e o medo nos guiando a guardar nossos pertences de valor no carro, resolvi, por que não?, convidar também o revolucionário separatista e vegetariano para o nosso singelo jantar, no que fui prontamente crucificado com olhares e murmúrios igualmente repressores, tanto da Chris quanto do Daniel. Na hora me senti como se esmurrassem meu estômago, como se fosse eu um descabeçado inconsequente, onde já se viu convidar alguém para dividir a refeição. Demorei alguns instantes para me refazer do golpe, mas a Chris tomou as rédeas da situação, colocou panos quente e direcionou os moços ao carro. 

O Jeremy é um cara muito inteligente, com muito conhecimento e ideias inovadoras que, apesar de viver em uma condição que não é a que mais me seduz, tem minha admiração por acreditar em seus ideais e persegui-los. Eu não sou ninguém para julgar quem escolhe morar no quintal de uma casa sem luz. Isso não está relacionado com a integridade e a honestidade da pessoa. Jeremy levou a gente em um restaurante que funciona em um hotel, que por sua vez funciona em um prédio que outrora foi uma escola ginasial. Muito bacana, comida boa e barata. A companhia interessante e hilária (Peter deu um show de non sense com risadas e grunhidos incompreensíveis) saiu por $20. E nós quase não fizemos isso porque sentimos medo. Mas o medo passou e a portentosa luz  do relâmpago fez o clarão que se formou dentro de mim se expandir para cada uma de minhas células.

Sentado no quintal, à meia-noite, vestido com meu macacão do arco-íris, ensinando ao Peter de 1 a 10 em português, me senti livre e pleno. Porque não tenho medo de ser quem sou, não devo nada pra ninguém e nada nesse mundo será capaz de me afastar da minha essência. Porque estar em profunda comunhão com nós mesmos é o único jeito de sermos felizes. Porque você é de um jeito e eu sou de outro. Então seja você o que é, mas nem pense em tentar me mudar, pois isso não acontecerá. Peter e Jeremy, lhes desejo tudo de melhor que vocês possam ter, assim como desejo para qualquer pessoa que tenha o bem dentro de si. Se realmente Cascadia estiver para nascer e vocês precisarem de um reforço para a "batalha", não hesitem em me chamar.

Mudamos de couch, a casa da Laura tem luz, é limpa e ela é sangue boníssimo. Vejo pela janela da sacada a minha amada cineasta a entrevistá-la para nosso documentário. Tenho orgulho e admiração por ela, embora ela tenha medo de que a nossa jornada siga rumos opostos. Christina, eu quero que você mude o mundo comigo. Eu quero mudar o mundo. Com você ao meu lado! Paz, paz, paz, paz, paz, paz, paz, paz, paz, paz, paz, paz, paz, paz, paz, paz!!!!!!!!