quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Você tem medo do quê?



03/08/2011

15:00. Vinte adolescentes nipônicos ouvem atentamente as instruções do também nipônico chefe da delegação. Estou aqui sentado em uma banqueta esperando a Bisny voltar com o cartão de crédito, sem o qual não posso alugar uma bicicleta (a minha está em SF). A turminha do Jaspion se prepara para uma carreata pelas ruas de Portland, Oregon, já devidamente encapacetados, só esperando o comando do líder. Breve, partirei em voô solo, a fim de oxigenar o cérebro e concatenar as ideias que tentarei expressar em sentenças substanciais. Esse inesperado tempo de espera gerou essa introdução, que, em algumas horas, terá mais conteúdo verborrágico visceral acrescentado. Vou pedalar e volto para soltar o verbo. Sem censura, sem freios, mesmo que meus leitores não passem de meia dúzia. Pouco me importa, isso para mim é uma necessidade, é a maneira mais satisfatória que encontro para materializar a voluptuosa amálgama de pensamentos engasgados que infestam o meu ser. É o modo mais eficiente de me conectar com meu âmago, que me dá coragem de ressaltar, enfatizar e ratificar os ideais que fazem a cada dia que passa me sentir mais capaz de mudar à minha volta as coisas com as quais não concordo. A começar por mim.

Dia seguinte. 11:00. Não tive nem condição física nem tempo de retomar este texto após a pedalada de 40 milhas. Após rodar três horas e meia de Sudeste a Nordeste por Portland, e logo devolvida a bike, nem bem havia me esticado na grama da praça para recobrar as energias, Chris e Barô chegaram do Outlet. Fotografias rápidas, jantar natureba no Whole Foods e viemos direto para a casa da Laura, nossa host emergencial. É do sofá de sua sala que volto a escrever. E volto ao ponto em que estava.

Eu sou uma pessoa de sonhar e imaginar. Até demais, até ultrapassar os limites do sadio devaneio. Viajar  pelo mundo sem destino sempre orbitou em meus universos imaginários. Mas a vida de cada um acontece de um jeito. A minha história foi sendo escrita de modo que esse sonho tivesse que ser adiado, dia após dia. Até o momento em que a minha realidade de garçom do Spot passou a ser mais importante do que qualquer "realidade" criada pela minha mente fértil. O feijão com arroz do cotidiano passou a ter um sabor especial, e eu acho que é por isso, por ter dado valor para o presente, para o aqui e agora, é que a recompensa de poder viajar veio logo. E um mundo se abriu para mim - em múltiplos portais. A cada instante em que avanço com meus passos nesses túneis, muitos outros se esboçam e me chamam a atenção: também quero ir lá! E o medo vai ficando cada vez menor.

Em uma de nossas entrevistas, com a Heather, em SF, perguntamos pra ela o que seria em sua opinião um mundo melhor. Ela respondeu que seria um mundo com menos medo. Eu concordo plenamente. A gente é criado pra viver com medo, o medo rege os valores de todos os segmentos da sociedade. A igreja te diz para ter medo de Deus, a escola te diz para ter medo do mercado de trabalho, suas amigas te dizem para você ter medo se estiver solteira aos 30. E aí você vai, que nem gado em boiada, sendo levado nem se sabe pra onde.

Um clarão de luz, como se fosse um longo relâmpago, me sacudiu intensamente anteontem. E eu decidi não sentir mais esse tipo de medo, pois ele não me pertence. Rapidamente vou situar nossos passos. Saímos domingo de Chico, CA, onde surfamos no sofá da Donna (um capítulo interessante, mas que não será contado agora) e subimos dirigindo pela Highway 101, ao longo da faixa litorânea do Oregon. Dormimos em um hotel em Florence, simpática cidade costeira. Nosso próximo destino era a Portland de onde escrevo, e até então não tínhamos onde ficar por aqui. Desde que o Barô chegou, nossos hosts têm que estar dispostos a receber três pessoas e não duas. Como o tempo era curto, ao invés de mandar requests pessoais, decidi escrever uma mensagem no grupo de Portland da página do CS. Esse recurso já havia dado resultado positivo por duas vezes, em Austin, TX, e na outra Portland, ME. Escrevi a mensagem e pegamos a estrada. Não demorou e o telefone toca: Peter, com voz de executivo. Disse que poderíamos ficar, que passássemos para encontrá-lo no que pensei ser seu escritório. 

Atingimos o destino e o "executivo" Peter apareceu no alto dos seus 21 anos, em trajes informais e cabelo e barba desalinhados; até aí, ornando perfeitamente com a minha imagem. Mas a surpresa estava por vir, e a partir de então o tal relâmpago veio me emprestar sua luz. LUZ. A casa de Peter não tem luz. Peter vive em uma comunidade chamada The Arc. Ao todo, entre habitantes e forasteiros, umas dez pessoas devem pernoitar diariamente nesse complexo habitacional insólito. O baque da falta de eletricidade foi um misto de comicidade e desconforto, mas todos os três tiramos essa de letra. Refeitos do susto, tivemos que lidar com o descontentamento da comandante da trupe, que não tinha sido avisada da nossa chegada. Ela não escondeu sua revolta com Peter, mas foi cortês conosco: remanejou as peças e nos desponibilizou o meditation room. Acho que a Bisny não chegou a comentar que, mais uma vez, tivemos problemas com colchão de ar, dessa vez no Yellowstone. Pois é, o nosso furou e ficou por lá mesmo. Insatisfeitos com o gênero, resolvemos seguir viagem sem adquirir um novo, imaginando que nas próximas paradas ele não fosse se fazer necessário. Mas se fez. No nosso aposento da meditação só havia mesmo o carpete; sem luz e sem cama. "Bom, nem tudo está perdido, temos lanternas e o Barô comprou um sleeping bag, que, estendido, pode comportar as costas de nós três e fazer da nossa noite algo não tão duro" - pensei. 

Como é de nosso costume, convidamos nosso anfitrião para jantar. Não saímos imediatamente, porém, porque um dos moradores da comuna pegou nosso celular emprestado e acho que esqueceu de devolver - ou deu uma abusadinha mesmo. Reunidos no jardim, no semi breu do fim do crepúsculo, fomos introduzidos a Jeremy Houston. Portlander, assim como Peter, falou sobre muitas coisas de que eu até então não tinha conhecimento. Contou do encontro Rainbow, que acontece anualmente nos EUA e em outras partes do mundo, sempre em alguma floresta diferente. Contou também do Cascadia, movimento separatista que propõe a criação de uma nova nação, no território que hoje seria o correspondente aos estados do Oregon, Washington e norte da California, nos EUA, e de British Columbia, no Canada. 

Calma aí, vírgula. Melhor, ponto e vírgula. Estávamos em uma residência sem luz, alojados improvisadamente em um cômodo sem móveis e não tão asséptico, nosso celular estava momentaneamente confiscado, e, de repente, um cidadão participante desse cenário me vem com uma história de que o poderosíssimo USA, terra de tratores e soldados, senhor das armas, vai ser desmembrado e assistirá nascer de suas entranhas um novo país, liberal e vanguardista! Acho que esse quadro mexe um pouco com os sentidos de três jovens que cresceram tendo suas roupas lavadas pela empregada doméstica, não? 

Enfim, resolvido o drama do celular e o medo nos guiando a guardar nossos pertences de valor no carro, resolvi, por que não?, convidar também o revolucionário separatista e vegetariano para o nosso singelo jantar, no que fui prontamente crucificado com olhares e murmúrios igualmente repressores, tanto da Chris quanto do Daniel. Na hora me senti como se esmurrassem meu estômago, como se fosse eu um descabeçado inconsequente, onde já se viu convidar alguém para dividir a refeição. Demorei alguns instantes para me refazer do golpe, mas a Chris tomou as rédeas da situação, colocou panos quente e direcionou os moços ao carro. 

O Jeremy é um cara muito inteligente, com muito conhecimento e ideias inovadoras que, apesar de viver em uma condição que não é a que mais me seduz, tem minha admiração por acreditar em seus ideais e persegui-los. Eu não sou ninguém para julgar quem escolhe morar no quintal de uma casa sem luz. Isso não está relacionado com a integridade e a honestidade da pessoa. Jeremy levou a gente em um restaurante que funciona em um hotel, que por sua vez funciona em um prédio que outrora foi uma escola ginasial. Muito bacana, comida boa e barata. A companhia interessante e hilária (Peter deu um show de non sense com risadas e grunhidos incompreensíveis) saiu por $20. E nós quase não fizemos isso porque sentimos medo. Mas o medo passou e a portentosa luz  do relâmpago fez o clarão que se formou dentro de mim se expandir para cada uma de minhas células.

Sentado no quintal, à meia-noite, vestido com meu macacão do arco-íris, ensinando ao Peter de 1 a 10 em português, me senti livre e pleno. Porque não tenho medo de ser quem sou, não devo nada pra ninguém e nada nesse mundo será capaz de me afastar da minha essência. Porque estar em profunda comunhão com nós mesmos é o único jeito de sermos felizes. Porque você é de um jeito e eu sou de outro. Então seja você o que é, mas nem pense em tentar me mudar, pois isso não acontecerá. Peter e Jeremy, lhes desejo tudo de melhor que vocês possam ter, assim como desejo para qualquer pessoa que tenha o bem dentro de si. Se realmente Cascadia estiver para nascer e vocês precisarem de um reforço para a "batalha", não hesitem em me chamar.

Mudamos de couch, a casa da Laura tem luz, é limpa e ela é sangue boníssimo. Vejo pela janela da sacada a minha amada cineasta a entrevistá-la para nosso documentário. Tenho orgulho e admiração por ela, embora ela tenha medo de que a nossa jornada siga rumos opostos. Christina, eu quero que você mude o mundo comigo. Eu quero mudar o mundo. Com você ao meu lado! Paz, paz, paz, paz, paz, paz, paz, paz, paz, paz, paz, paz, paz, paz, paz, paz!!!!!!!!

6 comentários:

  1. Parabéns pela coragem, bj

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  2. Pra quem diz: “Então seja você o que é, mas nem pense em tentar me mudar, pois isso não acontecerá.“ Dizer: “...eu quero que você mude o mundo comigo.“ Soa Cega-megalo-contraditório. Não tente mudar o mundo, sua barba ainda está deveras pequena aferida a de Jesus. Viva o mundo! Namastê!

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  3. polemico o féra ai de cima hein.
    Do seu latera, com carinho.

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  4. Esse eh um velho conhecido, meu camisa 6. Dessa vez ele esqueceu de assinar...

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  5. curti a pedalada tio!!!
    grande abraco e curtem bastante o resto da trip

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