quinta-feira, 28 de abril de 2011

Cena punk




27/04/11

"Melhor ser morto por um tigre do que pelo sistema". Patrick Allen Jones, punk de Asheville, nosso host dos últimos dois dias, me disse isso ontem. Construtor de canoa viking, colecionador de carrinhos de cortar grama, entusiasta do halloween, tomador incansável de cerveja, infrator da lei e conhecedor de história. Isso é um pouco da personalidade peculiar de Patrick, que, junto de sua - também punk - esposa Cherry e de seu gato de três patas, nos recebeu com muita hospitalidade.

Vindos de uma temporada de mordomias na casa da Susi, com comidinhas saborosas todos os dias e lençóis cheirando à canfora, foi um choque aportar na punk house.  Na segunda-feira saímos de Davie às 5:22 da matina, depois de três mirradas horas de sono. Até nosso primeiro destino, em Suwanee, Georgia, foram mil quilômetros de asfalto. Tanta estrada assim faz a gente perder um pouco a noção de tempo e espaço, e quando retomamos essas percepções já estamos em um lugar completamente diferente, às vezes radicalmente antagônico, como foi dessa vez. Saímos da faixa litorânea da interminável planície que é a Florida, passamos pela Georgia embaixo de temporal só para pegar a bandeira e estacionamos em Asheville, cidade alternativa cravada no meio das Smoky Mountains. Mudou a paisagem, a temperatura, a cara das pessoas e o nosso leito: tivemos que dormir cada um em um sofá, cercados por bandeiras de caveiras. Não tenho do que reclamar, foi uma noite bem dormida. Talvez a Bisny discorde de mim nesse ponto...

Ontem pela manhã saímos logo cedo, fomos direto pegar a bandeira de NC e paramos para alimentação em um café no centro da cidade. Foi ai que comecei a reparar o que Asheville tem de especial. Nesse café não existe nada descartável, nem o potinho onde vem o molho da salada. O moderno mictório não necessita de água e o H2O da torneira é aquecido por energia solar. Caminhando por downtown, por onde quer que você vá não se encontra nenhum McDonalds, BurgerKing, Subway ou similar. Acham-se mercados de produtos orgânicos que estimulam a produção local e a gente deu uma boa percorrida pela área ciceroneados pelo Patrick, que nos surpreendeu ao nos mostrar o quanto entende de história. 

Houve um pequeno acontecimento na nossa viagem que não havia relatado. Em um posto de gasolina, usando a marcha ré, no intento de posicionar o automóvel para o abastecimento, uma falha humana do motorista fez com que as bicicletas, presas ao rack, colidissem com uma mureta. Uma grande expressão de desolação no rosto do condutor se formou quando este constatou o estrago nas bikes. Vinte e quatro horas depois entrávamos em um porão em Asheville, que pode ser descrito como um hospital de bicicletas e, mais do que isso, significa para muitas magrelas a ressurreição. Funciona assim: você escolhe uma das centenas das bikes doadas que repousam por lá e vai montando-a do seu jeito, usando praticamente só peças que também foram doadas. Para se ter uma idéia, no conserto das nossas foram usadas umas dez peças. O preço final disso tudo? U$5.00, pois a única peça nova foi uma correia. Os caras que trabalham lá são voluntários. O Jeremy, por exemplo, que deu toda assessoria para gente sair de lá com as bikes zeradas, tira leite de cabra no alvorecer e depois trabalha entregando sanduíches - de bicicleta, é claro. Uma vez por semana vai ao porão emprestar seu tempo e conhecimento para quem quer fazer uma bike se curar ou renascer. O espaço sobrevive só com donativos de quem acredita que esse tipo de iniciativa tem muito à contribuir para um modelo de sociedade baseado na troca e cooperação, que é muito popular em Asheville; até pelos punks e embriagados.

De noite rolou uma confraternização no jardim dos Jones, regada à cerveja barata e boa conversa. Ao que me parece esse é um habito quase que diário, uma vez que nas duas noites os vizinhos apareceram e participaram. O Michael, que é a cara do Thunder Bird, é o mais gente boa: quer viver 102 anos, dorme às  4h e acorda às 6h30 todos os dias (nem ele sabe como consegue) e é um cara muito inteligente, com uma puta consciência ambiental e social. O Patrick então nem se fala, fuma que nem um doido e guarda as bitucas no bolso; pega tudo que acha na rua e conserta. Falando com ele sobre meu sonho de construir uma casa na árvore, o doidão já veio com soluções auto-sustentáveis elaboradíssimas e me mostrou seu portfolio: uma máscara de papel mache, uma geladeira do horror do último halloween e um raft viking para descer o rio nos dias de verão. Além disso, ele guarda consigo alguns objetos bem ao estilo José Mojica Marins, como uma carcaça de raposa e as peles de alguns esquilos que degustou. Segundo a Bisny, junkie demais.

Mas na vida é assim, nem todos são santos ou demônios. As contradições são o que mais enriquece o ser humano, eu mesmo me perco, sofro e me delicio com as minhas centenas delas. Cabe a cada um extrair o que encontra de melhor em cada coisa. De Asheville saio com muitos aprendizados, muito material para reflexão e alguns novos amigos. A propósito: Patrick, estou te esperando no Brasil para a gente construir a casa na árvore, mas acho que vou pular aquela parte de comer um macaco, caso você não se importe.

Só para terminar, hoje pela manhã descemos alguns quilómetros até a Carolina do Sul para pegar nossa bandeira número 19. Fomos parar em uma residência que, nos fundos, funciona como loja. E fomos brindados com o sorriso e o carinho do Faust, bebezão que brincou um monte com a gente, antes de pegarmos o rumo da Virginia. Chegaremos em Arlington em duas horas. O FiftyFlags está em seu 20º estado e, quanto mais eu viajo, mais quero viajar.

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